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Curiosidades

Os segredos dos pais no Ártico para ensinar sobrevivência aos filhos

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Todos os anos, nos meses de junho ou julho, sob o sol da meia-noite do Ártico, famílias de pastores de renas do povo sami no norte da Finlândia, Noruega e Suécia se reúnem para um dos maiores eventos sociais do ano: marcar os novos filhotes de renas para identificá-los.

A pé, a bordo de quadriciclos e até helicópteros, eles localizam e reúnem as renas semiselvagens que vivem soltas por vastas áreas, espalhadas por dezenas de quilômetros quadrados.

A expectativa é de que as crianças pequenas participem do evento. Os meninos e meninas mais novos ajudam a pegar os filhotes. E, a partir dos 10 anos, empunham suas próprias facas de marcação, seguram o filhote e marcam ambas as orelhas dele com um padrão único de corte.

As crianças recebem um padrão de marcação próprio ao nascer e o utilizam para marcar seus rebanhos pelo resto da vida.

Entre os sami, povo indígena espalhado pelas regiões mais ao norte da Noruega, Suécia, Finlândia e Península de Kola, na Rússia, as crianças não apenas participam do trabalho de pastoreio, como também são incentivadas a agir de forma independente na maioria das outras áreas da vida.

Independência a -30ºC

Elas podem decidir quando comer, quando dormir e o que vestir, mesmo em temperaturas de -30 °C. Para quem vê de fora, essa independência pode surpreender.

Missionários que visitaram o Ártico no século 18, escreveram depois em seus diários que parecia que as crianças sami podiam fazer o que quisessem e que faltava a elas disciplina.

No entanto, como pesquisas revelam cada vez mais, o modo sami de criar os filhos, aparentemente sem regras, tem sua própria filosofia e estrutura complexa.

Com o tempo, esse estilo parental único evoluiu para preparar as crianças para lidar com os desafios extremos da vida no Ártico – e promover um tipo particular de resiliência.

Uma das suas diretrizes é que, em vez de seguir uma rotina fixa, toda a família se adapta a quaisquer tarefas que precisem ser realizadas, seja a marcação de rebanhos, alguma viagem ou outras atividades conjuntas.

Dentro dessa estrutura, as crianças fazem suas próprias escolhas.

“Elas comem quando estão com fome e vão para a cama sempre que estão cansadas”, diz Tytti Valkeapää, mãe de seis filhos, com idades entre 8 e 18 anos, que mora na aldeia finlandesa de Kuttanen, na fronteira com a Suécia.

Embora Valkeapää não tenha nascido na cultura sami, ela se adaptou ao modo de vida local depois de se casar e entrar para uma família de pastores de renas sami.

Vida mais moderna

Como a grande maioria dos sami, sua família não é mais totalmente nômade – eles passaram a se deslocar bastante em motos de neve, o que transformou a vida dos pastores de renas e permitiu que eles se tornassem mais sedentários.

Mas, embora vivam principalmente em casa, as atividades tradicionais, como o ritual de marcação, ainda ditam o ritmo da família.

O processo de marcação leva várias semanas – e só é realizado à noite, quando ainda está claro, mas mais frio do que durante o dia. Isso torna menos estressante para as renas e seus filhotes.

Para poder realizar o trabalho em conjunto, toda a família muda seu ciclo de sono, trocando a noite pelo dia.

As crianças ficam acordadas a noite toda, trabalhando e brincando, por semanas a fio, junto com suas famílias e colegas pastores.

Elas tiram uma soneca durante o dia, cochilando sempre que têm vontade.

“Eu e as crianças podemos cochilar em um quadriciclo, em uma moto de neve, sob uma capa de chuva em um trailer ou em nossa van”, diz Valkeapää.

“Você só precisa ser capaz de descansar e comer sempre que puder. Durante a marcação, as crianças costumavam gostar de dormir em um lávvu (barraca), mas hoje temos uma pequena cabana lá.”

Sono diferente

Para Valkeapää, cultivar hábitos de sono flexíveis desde cedo é a melhor maneira de ajudar as crianças a lidar com as estações extremas do Ártico.

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As crianças sami ajudam os pais desde pequenas a marcar as renas, como nesta foto de 1955 @Getty Images

Na verdade, os moradores do Ártico geralmente dormem menos no verão e mais durante o escuro e longo inverno, quando os níveis de melatonina, hormônio indutor do sono, aumentam.

“Mudar o ritmo do sono é natural para crianças com as mudanças sazonais. Nunca tive que tentar forçar isso, porque tivemos a sorte de viver nos termos de nossos filhos”, diz ela.

“Durante a marcação, as crianças participam do trabalho e, quando não participam, brincam do lado de fora do curral. Acho que não ficam com sono quando há tanta coisa para fazer, e elas querem participar.”

No entanto, as noites agitadas de verão às vezes a fazem ansiar pelas noites escuras de outono.

“É mais fácil agora que elas cresceram um pouco, mas ainda assim nunca houve uma situação em que todas as crianças fossem para a cama ao mesmo tempo.”

No verão, durante as noites claras do Ártico, também é normal que crianças mais velhas, de 12 anos ou mais, saiam para pescar com os amigos à noite e só voltem para casa nas primeiras horas da manhã.

Resistência

Esta autonomia contrasta com o estilo parental intensivo, altamente centrado na criança, que está em ascensão em muitas sociedades ao redor do mundo.

Mas mesmo quando comparadas com comunidades vizinhas, como noruegueses não-sami, as famílias sami se diferenciam.

Um estudo comparativo na Noruega mostrou que as crianças sami eram “mais socialmente independentes do que as norueguesas” – e que “a autorregulação da alimentação e do sono era comumente praticada pelos sami, mas não nas famílias norueguesas”.

Também se espera que as crianças sami regulem e controlem suas próprias emoções, um padrão que é comum em comunidades circumpolares, de acordo com o estudo.

Outro estudo identificou a independência e a resistência como valores fundamentais dos pais sami, entre outros.

“Na pedagogia sami, um pensamento central é que os adultos não dão tudo pronto para as crianças”, diz Rauni Äärelä-Vihriälä, professora associada de pedagogia sami na Universidade Sami de Ciências Aplicadas da Noruega, Guovdageaidnu, que é sami e mãe de dois filhos.

“No pensamento ocidental, muitas vezes é esperado que os adultos deem tarefas e atribuições, enquanto para nós, a ação é baseada na liberdade, seja a questão de mudar os ciclos de sono, escolher hobbies ou qualquer outra coisa. Os adultos não podem simplesmente dizer [às crianças o que fazer] e estabelecer os limites. Além disso, não planejamos muito as coisas. As coisas acontecem quando acontecem [na natureza].”

O tempo é uma parte importante desta filosofia. “Acreditamos que as crianças devem ter tempo para pensar e expressar suas opiniões, e elas também precisam errar para aprender.”

Ela cita uma expressão sami do norte – “Gal dat oahppá go stuorrola” -, que significa: “Ele/ela aprenderá quando crescer”.

Outro ditado comum entre os pais sami, “ieš dieđát“, que quer dizer “você mesmo sabe”, também engloba essa mentalidade.

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Tradicionalmente, as crianças sami são encorajadas a serem independentes e autossuficientes @Getty Images

Os pais sami podem, por exemplo, dizer isso quando o filho insiste em sair no frio com roupas leves, pois a criança vai descobrir por si mesma se deve colocar mais camadas.

‘Birget'

Asta Mitkija Balto, professora emérita de pedagogia da Sámi University College, na Noruega, argumenta em um trabalho de pesquisa que o principal objetivo da educação infantil sami é “preparar as crianças para a vida e desenvolver indivíduos independentes que possam sobreviver em um determinado ambiente, e dar às crianças autoestima, entusiasmo pela vida e alegria.”

Parte disso é um conceito sami chamado “birget“, que significa lidar ou gerenciar tanto de forma independente quanto com os outros.

As estratégias utilizadas são muitas vezes indiretas, evitando o confronto, argumenta Balto, que é sami.

Os pais e mães sami, sobretudo os pais, podem, por exemplo, esperar por um momento em que o foco comum esteja em outra coisa, como contemplando o fogo, para discutir um assunto difícil sem criar uma sensação de confronto.

No entanto, apesar dessa independência, um conjunto de normas e deveres sociais molda a vida sami desde o início.

“Tradicionalmente, uma criança assume a responsabilidade em muitos tipos de trabalho relacionados ao pastoreio de renas e se sente orgulhosa disso. Sobretudo, ela não é um indivíduo, mas um membro de uma família ampla pela qual é responsável”, diz Äärelä-Vihriälä.

Renas

As crianças sami aprendem a usar facas afiadas, fazer fogo e se orientar na natureza, habilidades essenciais para a sobrevivência no Ártico, mas também têm uma dimensão social. Elas também devem ser capazes de marcar e identificar renas.

Alguns pastores de renas especialmente respeitados são conhecidos por lembrar e reconhecer milhares de marcas.

“Sobreviver ou se dar bem na vida, aos olhos da comunidade, não tem nada a ver com ganhar dinheiro ou uma boa carreira, mas, sim, com as habilidades de sobrevivência. Além de sobreviver na natureza, é preciso conviver com diferentes tipos de pessoas em diferentes tipos de ambiente. Uma criança sami cresce pensando que as pessoas são todas diferentes e que é preciso ser sempre criativo. Eu diria que isso é muito tolerante”, explica Rauni Äärelä-Vihriälä.

Hoje, essas habilidades antigas ainda podem ser úteis. Um estudo sugere que conhecer a língua sami e estar conectado com suas famílias extensas e tradições culturais está ligado a uma maior resiliência e bem-estar em crianças e jovens sami.

De modo mais geral, a pesquisa indica que o desenvolvimento de habilidades de resolução de problemas e autorregulação com o apoio de uma família carinhosa pode promover a resiliência nas crianças.

Uma forma de impor sutilmente as normas culturais é por meio de uma prática parental sami chamada nárrideapmi, uma espécie de provocação lúdica.

Isso também foi observado em outros povos circumpolares indígenas, como os inuítes, mas não nas culturas predominantes escandinavas.

O propósito do nárrideapmi é aumentar a autoestima da criança e incentivá-la a se controlar melhor e não se levar tão a sério.

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As estações do Ártico ditam o ritmo da vida das famílias de pastores de renas @Getty Images

nárrideapmi é geralmente praticado por familiares próximos, como tias e tios, não necessariamente os pais.

Eles devem conhecer bem a criança e garantir que nunca digam algo realmente doloroso ou a intimidem, diz Rauni Äärelä-Vihriälä.

“Para um adolescente, pode ser algo relacionado a namoradas ou namorados, enquanto para crianças menores, pode ser algo ligado a como se vestir, por exemplo. Se eu notar que meu filho não está usando roupas de inverno suficientes, posso perguntar se ele está indo para uma praia tropical ou algo assim”, explica.

“Você meio que espera que a criança reaja brincando com algo semelhante em relação a você. Isso também faz a criança perceber por conta própria o que ela precisa fazer, e a encoraja a pensar por si mesma. É, mais uma vez, algo bastante indireto.”

Algumas tradições parentais sami estão inseridas nas línguas sami, um grupo de línguas relacionadas ainda faladas por cerca de 25 mil a 35 mil pessoas.

As línguas sami ainda usam o dual, uma forma que outrora foi conhecida do inglês antigo, do grego antigo e do eslavo eclesiástico antigo.

Refere-se a duas pessoas fazendo algo, como na expressão sami do norte “moai manne“, que pode ser traduzida como “nós dois vamos”.

De acordo com Äärelä-Vihriälä, os pais sami costumam usar o dual:

“Se uma criança faz xixi na calça, podemos dizer: ‘Oh, nós (dois) fizemos xixi, vamos (nós dois) limpar isso?' Ou podemos dizer: ‘Ah, nós (dois) não estamos acostumados a fazer isso'. Dessa forma, podemos voltar a atenção da criança para outro lugar, sem culpar e criticar.”

Mesmo quando os sami se adaptam à vida urbana, alguns mantêm certos princípios parentais ancestrais.

Laura Kallioinen, professora e mãe de três filhos, é uma mulher sami que cresceu na aldeia mais ao norte da Finlândia, Nuorgam, na fronteira com a Noruega.

Hoje ela vive com sua família em Jyväskylä, uma cidade na parte ocidental da região dos lagos finlandeses.

A família costuma passar todas as férias em Nuorgam, onde as crianças ficam acordadas até de manhã, se quiserem.

Questionada sobre a rotina delas, Kallioinen ri: “Que rotina? Não temos nenhuma”.

Isso a diferencia de seus vizinhos não-sami na região dos lagos. “Acho que não conheço nenhuma outra família nesta área que não tenha um horário fixo para o jantar.”

Ela ressalta que seus filhos nunca passam fome, e sempre há comida disponível – eles simplesmente não seguem um cronograma.

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No passado, as famílias sami se deslocavam bastante com suas renas @Getty Images

“Às vezes, eu tento, mas simplesmente não funciona.”

Ela também sente que seus vizinhos mais ao sul fazem uma distinção entre as diferentes atividades familiares de uma forma que não existe na cultura sami.

“Uma coisa que eu também notei é que aqui as pessoas realmente investem no ‘tempo de qualidade' que passam com a família. Eu realmente não entendo isso, para nós é como ir à floresta colher frutas ou pescar no gelo, coisas normais.”

No entanto, ela admite que o ambiente da cidade os fez adaptar seu modo de vida.

“Minha filha acabou de dizer que gostaria de usar roupas confortáveis ​​ao ar livre, que as pessoas usam o tempo todo em Nuorgam, mas ela não sabe se ficaria com vergonha de fazer isso aqui. Eu realmente não me importo com o que as pessoas pensam, sempre usei (as roupas) de acordo com o clima.”

Identidade sami

Para Kallioinen, fortalecer as habilidades linguísticas sami de seus filhos tem sido a maneira mais importante de permanecer conectada à sua terra natal, cultura e parentes, e criar os filhos com uma forte identidade sami.

Mesmo para aqueles que ainda vivem do pastoreio de renas, a vida está mudando.

A mudança climática está deixando as condições de neve e gelo menos previsíveis e tornando mais difícil para as renas encontrar comida.

A extração de madeira está destruindo florestas antigas onde as renas encontram musgo para comer.

Muitas cooperativas de pastoreio de renas não recolhem mais renas que vivem soltas em lugares distantes para a tradição de marcação — em vez disso, mantêm os filhotes perto de casa.

Para Valkeapää, mãe de seis filhos que se casou e entrou para uma família de pastores de renas, o fato de o ritual de marcação ocorrer durante as férias escolares dos filhos ajuda a seguir o ritmo antigo.

“Às vezes, eu sinto que algumas pessoas podem pensar que meus filhos são preguiçosos se dormirem até o final da tarde, mas isso é realmente um problema? Talvez seja apenas um problema da nossa sociedade.”

E embora ela se orgulhe de que os filhos já estejam participando do trabalho da família, em última análise, até mesmo a decisão de continuar este legado será deixada para eles.

“Claro, é uma bela ideia que nossos filhos continuem pastoreando renas. Mas eles precisam decidir por si mesmos. Você também precisa querer isso, e você precisa de um certo tipo de personalidade para ser capaz de fazer isso”, diz Valkeapää.

Questionada sobre que tipo de personalidade seria, ela responde: “Bem, você sabe, é preciso confiança e esse tipo de atitude de sobrevivência. Esse tipo de atitude de ‘não mexa comigo'”.

*Suvi Pilvi King trabalha com os Arquivos Sami, no Arquivo Nacional da Finlândia, e mora em Inari, na Finlândia. Ela é coautora do livro “Revitalizing Indigenous Languages: How to Recreate a Lost Generation” (“Revitalizando as línguas indígenas: como recriar uma geração perdida”, em tradução literal).

Por BBC

Cassio Felipe

Professor, Escritor e Jornalista Especialista em Relações Internacionais e Diplomacia

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