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Fashion

Conheça o Trashion: Por que a moda de luxo está de olho no lixo?

Bruno Astuto explica o conceito por trás do lixo na moda e afirma que não há nada de novo num saco de lixo vendido por quase US$ 1.800, como fez a Balenciaga.

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Desde que o mundo é mundo, o lixo pode ser transformado em luxo. Como nas redes de pesca do Egito Antigo, que viraram meias de tricô nos pés da aristocracia faraônica e também nos trajes slashing que as cortes europeias ostentavam nos séculos XV e XVI, a partir de roupas rasgadas de batalhas. Ou no ódio provocado pela rainha Maria Antonieta, quando posou em 1793 para o famoso retrato pintado por Élisabeth Vigée-Le Brun a bordo de um vestido-chemise típico das mulheres da plebe (ele teve que ser retirado da exposição oficial em que foi apresentado ao público).

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Look da Balenciaga (Foto: Getty Images, Imaxtree e Divulgação)

No início do século XX, Gabrielle Chanel lançou vestidos de malha listrados inspirados nos uniformes dos pescadores de Deauville, dos quais o concorrente Paul Poiret desdenhou como “pobreza de luxo”. Nos anos 1930, Elsa Schiaparelli criou “jornais de vestir”, com roupas que reproduziam primeiras páginas de gazetas e que, também, remetiam à realidade das milhares de pessoas que cruzaram a linha da pobreza por causa dos efeitos da crise de 1929, encontrando nos papéis os únicos cobertores. Sete décadas depois, o estilista John Galliano relançaria na Dior e em sua própria marca as estampas de jornais, que foram parar até no figurino de Carrie Bradshaw no seriado Sex and the City.

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Tênis da Balenciaga (Foto: Getty Images, Imaxtree e Divulgação)

A coleção de prêt-à-porter dava continuidade ao desfile de alta-costura do inverno 2000 da Dior, batizado “Les clochards” (literalmente “Os mendigos”), em que as manequins cruzaram a passarela a bordo de ratos taxidermizados pendurados nos cintos, bainhas rasgadas e garrafas de uísque nas mãos. Galliano disse que encontrara a inspiração enquanto cruzava com a população de rua em suas corridas matinais pela capital francesa. Foi o bastante para que, nos dias seguintes à apresentação, protestos tomassem a porta da sede da maison, na Avenue Montaigne – a grife relutou, mas teve de se desculpar ante esse cancelamento avant la lettre.

O “trashion” (fusão das palavras inglesas para lixo – trash – e moda – fashion) é uma recorrência autofágica no universo do luxo. Dependendo da época, vira ferramenta de contracultura, como nos punks do fim dos anos 1970, ou de despojamento minimalista, como no japonismo dos anos 1980, tendo à frente o visual “Hiroshima chique” de Rei Kawakubo e os vestidos que foram explodidos em 1998 pelo recém-falecido Issey Miyake na coleção Pleats Please. Agora está de volta à boca do povo, graças a Demna, estilista da Balenciaga. No início do mês passado, Kanye West lançou sua collab coma Gap e a marca em pop-ups surpresa, instaladas em estacionamentos de Miami. No lugar de prateleiras, os clientes encontravam os moletons jogados em caçambas de lixo, que reviraram loucamente. A mesma Balenciaga viralizou duas vezes neste ano, ao oferecer tênis sujos e destruídos por alguns milhares de reais e, também, o famoso saco de lixo que virou obsessão no desfile de março, em Paris.

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As estampas de jornais no vestido Dior do inverno 2000 (Foto: Getty Images, Imaxtree e Divulgação)

Como era de se esperar, a moda pós-Covid vive inúmeros paradoxos. O retorno das festas traz brilhos, plumas, tecidos nobres; o trauma de dois anos de moletom convida a um anseio por glamour, roupas de trabalho mais sofisticadas, os tênis saindo um pouco de cena para dar lugar a botas, escarpins e plataformas vertiginosas. Ao mesmo tempo, existem a guerra, a varíola do macaco, a inflação galopante que corrói a renda da imensa maioria que não vive de renda. Nesse contexto, o trashion pode ser visto tanto como um deboche de classe como uma afirmação da individualidade daqueles que não veem com bons olhos a pressa em decretar o fim do martírio da humanidade. E o humor vai fazendo seu trabalho, na figura dos inúmeros memes de pessoas desfilando com seus sacolões nada grifados de US$ 0,99.

O calor que sempre levanta a estética trashion surge da eterna pergunta: pode a moda passar do ponto na glamorização da miséria? Será que a indústria, altamente poluidora, pode se permitir brincar com lixo, ao passo que existe um clamor generalizado das novas gerações por soluções sustentáveis na produção das roupas? Afinal, esse ponto existe, quando toca a liberdade de criatividade artística e expressão? Talvez o caminho esteja nas vivências dos criadores. Refugiado adolescente da guerra de sua Geórgia natal, Demna quis, como as trash bags, chamar a atenção para o conflito na Ucrânia e suas vítimas inocentes, que têm que deixar suas casas às pressas, colocando poucos pertences em sacos de lixo. Esse certo “lugar de fala” também tinha Alexander McQueen, outro avatar do trashion, que era obrigado a carregar suas coisas nos mesmos sacos, nos tempos de dureza. Por fim, a Balenciaga aderiu ao World Food Programme (WFP), que leva assistência alimentar às regiões de conflito na Ucrânia.

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A caçamba da collab Yeezy Gap Engineered by Balenciaga (Foto: Getty Images, Imaxtree e Divulgação)

Só a responsabilidade social que pode transformar o patético do espetáculo puro e simples em parte de uma solução maior. Caso contrário, é apenas lixo.

Cassio Felipe

Professor, Escritor e Jornalista Especialista em Relações Internacionais e Diplomacia

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